domingo, 25 de março de 2012

A Epistemologia das coisas do mundo

Quem sabe fazer a poda no ser humano não lhe faria brotar novidade. É tudo tão velho e mesmo, que as coisas novas receiam chegar a território marcado. Um braço, uma perna... cresceriam novos membros mais dinâmicos e belos? Uma cabeça... novas ideias? Novas ideias, preciso de novas ideias.

Certa vez, lia algo sobre a Epistemologia das coisas do mundo. Conclui logo que "epistemologia" soa bem; é uma dessas palavras garbosas, pronunciadas na lentidão de tudo que deve ser compreendido, mas que, no fim, é um monte de letras bobas. Epistemologia é algo como o estudo das formas de se estudar aquilo que pode ser estudado. Muito bem, é bonito e engrandece a retórica, mas nada significa para mim. Na verdade, não tive propósito inicial - se não o de preencher algumas lacunas da informação - ao citar a Epistemologia. O que me ocorre agora, no entanto, são trouxas de motivos que insistem no enunciado assunto.

Inicialmente, preciso reforçar o quão oco de sentido pode ser um assunto desses. Veja bem, quer conhecer a maneira de se conhecer, quem nem ao menos conhece. Há uma problemática aí, pois a escala gradual das coisas não está sendo respeitada. Imagine se o espistemólogo - crendo aqui na existência de vocábulos tão peculiares - vai conhecer todo o conhecimento. Pois que ele precisa! Conhecer a forma de conhecer coisas complexas é ainda mais complexo, já que é um conhecimento a mais. E isso acabaria por fazer do epistemólogo uma enciclopédia, que ainda ensinaria a ler e a compreender o que é numérico. Pelos Céus! E eu poderia estar criando aqui o Guia do mais novo Empreendedor.

Mas ainda é cedo. A relatividade de tudo manifesta-se e aos poucos eu percebo outra forma de compreender essa "questão epistemológica". Acompanhe: o que precisa fazer uma pessoa interessada na compreensão de um texto? Aprender a lê-lo, oras! Não se podem compreender equações matemáticas sem admitir que dois mais dois seja quatro. Entende? É preciso saber como conhecer o que se quer, ou - para os mais corajosos - aprender a cruzar um rio sem passar pela ponte. A Epistemologia é uma ciência utilíssima! Mas, óh, ainda se pode nadar por este rio...

No fim de tudo, a Epistemologia é uma grande bobagem e o espistemólogo poderia vender as calças! Os senhores de boníssima instrução, aqueles dados ao deleite dessas ciências tolas, são incapazes de perceber que um triângulo tem três lados e três pontas – e é por isso especial -, só enxergando que nele há bissetrizes e razões trigonométricas! São pessoas que dispensam credulidade e devem ser evitadas. Oh, não! Não vires a página!

Mas Amigo meu, se chegou até esta parte do texto, eu faço-lhe reverências. Creio que é bom conhecedor das formas de conhecer, sobretudo a paciência e a piedade para com este monotemático prolixo que vos escreve. (Este não é o ponto final!) A partir de agora, saiba que a Epistemologia lhe acompanhará para toda vida. Verás a Epistemologia em tudo que for objeto de teu conhecimento. E chegará um dia em que a Epistemologia será a porta de entrada para todo processo de conhecer e saber!
A Epistemologia não é mãe, é ama-de-leite.
Epistemólogos de todo o mundo, uni-vos!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Bethania.

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(Queridos amigos, antes de mais nada, espero que esse texto passe a vocês, tudo o que eu quis passar para mim mesmo, pois escrever, na minha concepção, é, sobretudo, um ato de inconsciência. Peço desculpas se as palavras não exprimirem o real sentido que quis dar a elas - ossos do ofício! E conto mais uma vez, com o auxílio da sua imaginação. Vamos ao texto.)
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Ela passava o gume frio da faca sobre si. As veias destacadas da pele magra e morena rompiam-se aos poucos e, de forma curiosa, proporcionavam um efeito compassado aos filetes de sangue que brotavam dos pelinhos. Pode-se garantir que havia menos lágrima do que sangue; sangue era algo que lhe sobrava aos montes, pois ela já tivera de sangrar muito na vida. Aprendeu a poupá-lo, aprendeu a destilá-lo aos pouquinhos, ritmando.

Ela acendeu um cigarro e prestou atenção às formas que a fumaça tomava ao entorno de seu rosto. Ela podia jurar que havia algumas letras voadoras ali. O calcanhar doía – o palco não devia parecer cimento, pensou. Por outro lado, seu coração estava anestesiado e a folia ainda contraía os músculos de seu corpo, bombeando sangue para as veias abertas. Ela era dona do dom.

Eu estava bem na sua frente. Bethania me chamou de meu amor. Bethania repetia frases sussurradas que mal reuniam forças para chegar ao pé do meu ouvido. Ela pediu que eu tocasse os seus cortes. “É fundo o bastante?”. Mas eu era fraco perto da Bethania e o sangue dela mesclava-se com as minhas lágrimas, que eu não conseguia prender. No chão, uma mistura densa e escarlate corria livre.

A força daquela voz me controlava. Não pude afastar meus fantasmas de mim e acabei cedendo ao impulso. Meu dedo afundou no sangue da Bethania. Quente. Ela sorriu um sorriso inconstante e pude sentir a epifania; percebei, pela intensidade do momento, que suas memórias estavam vivas em mim.

Senti a força do seu timbre e das antigas canções me levando para um passado preto-e-branco – se é que o mono cromatismo não se devia à tontura da queda. Dei por mim prestes a entrar no palco. O único som audível originava-se das batidas do meu coração em arritmia. Pé direito, pé esquerdo, pé direito. E o montão de cabeças estagnadas estava bem na minha frente. Nosso senhor, eu senti medo. Por alguns segundos eu fiquei ali, imóvel. Na ponta do meu nariz havia algumas gostas hesitantes de suor, que teimavam em não cair.

Dei por mim, por Bethania. Dei por mim que eu era Bethania. Mas essa conclusão logo foi abafada pela música que saía pela minha boca. Música que eu não podia controlar. Palavras feitas agulhas que estouram balões. Comecei a cantar trechos tristes, sustentados pelo vigor da voz da Bethania, da minha voz.

"Flor amarela, flor de uma longa espera. Logo meu coração ateu."

Ateu, ateu. Quem vai dizer que não foi obra de deus? Eu daria todo meu coração rachado à Bethania. Porque ela me fez ver que as coisas não acabam, que a solidão é uma passagem de mão única para tudo que se quer realizar na vida. A solidão é mentira. Há sempre um fiapo da Bethania em mim e eu não vou te perder em qualquer canto. Você é a mais doce. Ah, Bethania.

domingo, 19 de julho de 2009

Inquietas Sombras*

--- É véspera de fingir. Acima, branca paz do céu – inalcançável; abaixo, a tábua fria do palco que me fará dizer mentiras outra vez. À frente, longo corredor faminto de sombras e deleites da alta-costura. Há sussurros agudos e frívolos, cuja origem me é impossível determinar. Sei que tentar não vale a vida gasta e que não vale doar-se à causa perdida. Sei também que a morte mora ali e irá se revelar no primeiro ato. Sei que não estarei sozinho por mais que as luzes tenham se apagado ou vento insista em não pausar a cantoria. Sei que, por Deus, haverá sempre sussurros ali.
--- As lagartas da barriga iniciam a metamorfose. A mão esquerda encerra a chave do coração e a certeza da partida. Suspendem-se as cortinas e sigo em mar bravio a fim de entender-me e sentir-me. Para Dante, o teatro é inferno. Para mim, o teatro é inferno. Pois quero que a chama arda fundo na pele; quero engolir suas labaredas para matar as recém formadas borboletas.
--- Ato segundo: já convivo com a morte. Convivo com todos os sentimentos possíveis dentro de uma caixinha. O choro, então, jorra pela face por ter seu lugar tomado pelos demais sentimentos. Há dentro de mim, mais do que uma única alma. Na verdade, conta-las seria tão impossível quanto parar de chorar. Ora, devo parar! Há aqui muito mais que o melodrama de uma pessoa sem causa. Há a comédia e há o pierrô. A comédia deve tirar risos à força, assim como tiro lágrimas donde mais parece ter secado. O pierrô deve existir e para ele, essa tarefa resume-se a lamentar. Logo, sou pierrô. Sou-o por uma fração de milésimos de segundo, o que sob a luz cênica é, mal comparando, uma ida á Marte.
--- Covardes aplausos, hipócritas, giram a bússola e me mostram que eu estou terminado. Cheguei à última estação e não há ninguém. Descobrir-se ninguém é algo pelo qual, deve-se realmente lamentar. Lamentaria de fato, não fosse a música que ainda em mim toca. Levanta-me os braços, sacudindo-os contra minha vontade. Agradeço ao público por algo que não sou e os aplausos incessantes me ensurdecem, pondo fim ao último sentido que me restava. Há cacos de mim pelo chão. Os demais atores esmagam-nos sob suas botas brilhantes, mas já não é hora de sentir compaixão por mim. Perdi-me há muito, quando pus o pé ali, naquela mesa de sacrifício. Perdi-me nas chamas do inferno.
--- A chave gira a fechadura do coração mais uma vez. Saio dele. As gratificações no camarim não me enchem de maneira alguma. Convivi com a morte durante todo espetáculo, mas apenas fui sepultado ao fim da última palma. Agora eu sou um nada a esperar a próxima hora de por a alma na coxia. Mas se quer saber, acho mesmo que eu não tenho alma. Eu tenho é máscara.


*J. Goethe, em Fausto: "Aí vindes outra vez, inquietas sombras."

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

À Judith Deboi

Minha cara,

Não é novembro, nem noite. Cuido que a chuva, ritmada pelo céu, faça de mim mais noite e muito mais novembro.
Lembrei-me que apesar da lástima em que me encontram as mãos, nao há doença maior que me pudesse impedir de lhe escrever. O que já é por si só, uma doença. Se a sombra é boa, o fardo é grande. Na sombra de conhecer uma alma tão deliciosamente linda – leitora de minhas letras -, acabei por trazer o demônio nas mesmas vestes. E este demônio é santo. Mas que fique claro, que me refiro por estas frases, exclusivamente, à minha boa Judith de outrora.

Como nunca, escrevo-lhe de peito calmo; sem dores no coração. Você nunca precisou de amor, quanto mais fosse piegas. A pena em minha mão já não desenha as mesmas letras redondas e perfeitas. Sabe, o tempo é imundo, mas não a hora. A hora é cicatriz, é estática. O tempo passa, e arrasta, e mutila. És você o meu tempo, Judith. Você tomou-me os dias e os meses, deixou um pobre miserável desiludido e doente. E se amanhã, eu não acordar, esta notícia lhe dará ainda mais motivo para viver. Enquanto eu vou me esvaindo a cada letra e a cada gole de café, você vive ainda muito alegre. Você nasceu antes do mundo. E quando o planeta era ainda criança, dir-se-ia que você lhe trocava as fraldas.

Creio, não ter revelado o tamanho fogo que me motivou a lhe escrever. Pois bem, ficará sem mais essa revelação. As palavras aqui escritas já não correspondem à vontade de meus dedos em escrevê-las. Não sei como ou por que aconteceu. Aconteceu. E então eu já não tenho mais o que dizer. Eu nem me lembro se você existe mesmo, ou se não é mais que um dos devaneios da gente frívola.
Bem, se não encontrar muito que ler nesta carta, há de me desculpar; não há, de fato, muita coisa para dizer. Cansei mesmo de retirar palavras de dentro de mim. Digo, então, por fim, que os pingos que borram esta carta não são lágrimas. Não sei bem, mas parece ser café. Perdoe os descuidos de um velho, já ruim do coração.

sábado, 8 de novembro de 2008

Em celulose.

“Uma esfera enorme na dor que era ver em contorno – cujo nome carecia pela infância do mundo – foi chamada, sabiamente, de Sol por um amigo. O tal Sol já nos fazia arder em carne e suportar, no vermelho da pele, o calor do deserto.
O nome do deserto eu não lembro, pois caso me submetesse ao esforço para lembrar um nome, por certo desmaiaria e poria em chamas o meu corpo, no ouro da areia. O caldo de minha mente, marcado em ponto fixo, tornava-se involuntário. Pois que então eu seguia, na busca de um nada, do nada e ao nada. Mas era sim, um nada muito mais que a soma de tudo e, por muitas vezes, eu caía em desacordo comigo mesmo. E eu caía também no chão e afundava junto à areia para o centro da Terra, para esquecer-me lá. Para fazer de mim, mais lenha estalando na fornalha.
Então veio a vírgula deste meu relato. Fazendo sombra com a mão esquerda, pude enxergar quase que na combustão de minha vista, uma pequena folha de papel sobre as dunas. Nela, portanto, me fiz em papel. No papel que vai durar o tempo necessário. Mas vai também, no futuro, diluir-se em água. Aí, o papel vai matar minha sede. E será essa a minha solução; serei o soluto e o fim dos problemas. Você me lê; então, estará tudo bem."

sábado, 23 de agosto de 2008

Strawberry Fields Forever.

--- Mas sabe, eu sei quando é um sonho. Quando é um sonho é mais gostoso, sempre, não, algumas vezes penso que sou eu mesmo. Que eu fui e sou aquele campo de morangos. E que piso perto de você, quando vou ao campo dos morangos. Vejo despencar os morangos, pois lá, a copa de suas árvores e bem alta e é possível vê-los despencar. Alguns morangos despencam rápido demais. Mas tudo parece funcionar bem. Mas tudo parece um sonho. Nada é real.

--- Campo de morangos para sempre, sempre, sempre. E não acho que alguém esteja na minha árvore. Ela está só, caíram os seus morangos. E lá se pode perceber que ela ainda não está triste, é claro. Porém, é preciso que cada qualquer pessoa cuide dela e faça brotar dela novos morangos. E não será tarefa difícil, é de longe a mais formosa árvore, que o laborioso nutritivo de um sonho regou. Fez-se germinar de pálpebras postas. E fez das noites mal dormidas a sua redoma de vidro. Agora vou, estou indo para o campo dos morangos, não há por que esperar. É para sempre.

--- Viver é fácil de olhos fechados, sem entender realmente o que você vê. Está ficando muito difícil de chegar lá. Acho que não mais conseguiremos ver, mesmo de olhos fechados. E como, então, chegar ao campo de meus morangos? É por pra tocar sua voz, do homem que apaziguou a vida de quem vive. E a voz dele guiará quem for ao campo dos morangos para sempre. Quando o caminho se mostrar, você já não conseguirá distinguir o Não do Sim. E tudo pode parecer um sonho. Mas sabe, eu sei quando é um sonho. E às vezes, é muito difícil saber...

--- Mas está tudo errado, por isso eu acho que discordo. Não se caem mais os morangos como antigamente. Não se permite que despenque em calma. E quando eu for àqueles campos, deixe-me te botar para baixo. Pois que eu fui, quero agora inflar meus pulmões do morango, do morango dos campos para sempre. Sempre, não, algumas vezes. E eclode o fim, quando o sempre dos morangos cai em minhas mãos. Não os quero pegar, quero vê-los cair lentamente apenas. É muito mais difícil faze-lo e acho que não sou mais eu. Algumas vezes, penso que sou eu mesmo lá, fazendo despencar morangos do alto da árvore. E nunca passa disso.

--- A copa de ramagem cinza ameaça cair, e eu não quero vê-la cair, quero apenas seus morangos. Não quero estar presente quando todos os morangos tocarem o chão de uma só vez. Como se fosse muito pedir morangos... Dora em diante, quero tê-los só para mim. Não será mais para sempre, e não será breve também. E as despencas de morangos se tornarão enfadonhas: chegou o fim. A grama dilui os morangos. Nada é o que parece ser. Mas sabe, eu sei quando é um sonho...

domingo, 17 de agosto de 2008

Relicário por escrito.

--- Os finos dedos de sua mão esquerda deslizavam sobre o papel, segurando com uma imensa leveza a caneta que seu pai lhe dera na noite anterior. Era uma caneta comprida e macia, envolta em certo pedaço de borracha e com a tampa repleta de furinhos e marcas provindas de uma boca nervosa. Não era lá a caneta mais bonita, mas ainda assim era confortante saber que, com ela, era capaz de escrever algumas palavras. Palavras essas, que depois de muito bem escritas, eram engavetadas de forma cruel e nunca mais lidas. Palavras proibidas de desfilar para outros olhos, senão os seus, diminutos e negros como o ébano. Palavras suas, parte dele mesmo.
--- E com a vinda do outono, cada folha que caía do ipê parecia brotar-lhe na cabeça uma nova idéia. E escrevia tudo, punha tudo que acontecia ao seu redor no papel, em forma de letras desalinhadas e redondas. Enquanto outros garotos brincavam no quintal, ele preferia sentar-se frente à lareira, despir os sapatos e escrever suas palavras. E daí saía o sorriso que o habitou por muito tempo. Muito tempo...
--- E ele escrevia sobre tudo, sobre monstros marinhos, cemitérios de padres, frutas anormais, barreiras no tempo, cidades londrinas e sobre sua pequena família. Era o seu amado vício, sua matéria-prima para viver e mover seu mundo. Não o compreendiam. De quando em quando, ouvia certas coisas do tipo: “Palavras! Simples palavras! Que é que se tem de mais nas palavras?!”. Ah, como tinha.
--- Então, foi triste. Foi muito triste quando acabaram-se as palavras e a tinta de sua caneta secou. Quando não era mais capaz de encontrar a fonte de sua felicidade. E ele criara uma certa dependência quase química pelas palavras. Não poderia viver sem elas. Achou, portanto, melhor calar-se; não falaria e não pensaria mais em nada.
--- Acabaram-se os sorrisos e toda a tristeza do mundo pesou em suas costas. As inúmeras palavras que ele escrevia todos os dias tornaram-se lágrimas pesadas e gélidas que despencavam com tremenda força de seus olhos, já vermelhos e ardidos. Então estava tudo acabado. Não haveria mais alegria em seu papel, haveria sim tristeza, muita tristeza.
--- No fim, a tristeza e a depressão moviam seu mundo. E ele viu nessa aí, a fonte de sua renascença. Escreveria sobre sua tristeza e sua incapacidade de grafar, de forma alegre, suas palavras. Contaria em seus versos, que a tristeza não tem fim. As emoções o trariam e o levariam. E foi assim, portanto. Triste fim, quando essa mesma tristeza é bela. Eis minha autobiografia.