quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A (des)ilusão do café

A vida de tempos em tempos é renovada, nem sempre significativamente, e algumas vezes é um tanto quanto peculiar. Compreenda-a, ou melhor tente fazê-la, verás que não é a mais simples , tão pouco a mais segura das opções. Espero ajudá-lo.


Era uma xícara florida. Tanto bom humor contrastava com a cor de bronze do café surrado pelo tempo. Marrom quase morto. O gosto, não nego, era amargo, mas me fez bem, levou-me para ver a vida passar. Não passava, coisa complexa demais. Simplesmente, não passava.
O tic-tac adentrou meus ouvidos, queria evitar, mas foi mais forte. Olhei. Cinco e meia ( que horário fatídico , pensei). Jornais tão secos, encharcados de números, novela de rádio. Nossa ! Como estava quente, o calor embassava as vidraças. Um grito, o último de que me recordo:

Dóris, venha ver. Está morto.

Não era verdade, não podia ser. Estava morto. O gentil peixinho dourado Manuel agora dormia. Para sempre.
Dóris desabou, como os prédios que um dia tocaram o céu. A coisinha mais amada, o que , de fato, a compreendia, sua única razão de pertencer àquela dimensão. Prefiriu ir para uma melhor, nada se igualava áquela dor.

Embalou-se, arriscou um bocejo, cambaleou e dormiu.

Dóris despertou numa terra, das mais bizarras, onde a brisa amansava o azul e os raios de sol fundiam-se com seus cachos cor de ouro.Ah, como era bom ouvir o vento batendo nas folhas, as lebres contentes com a vida, a água, tão clara quão inocente. A infelicidade adormeceu, ao passo que as aves sucumbiram. Das mais diversas: azuis, rosadas, amarelinhas e as de mentira. Era uma orquestra perfeita e simplória.
Dóris flutuava em seu mundo interior, seu "eu" mais profundo, a única parte em que se pode realmente confiar, ou pelo menos se podia. A gente nunca sabe quando a vida vem e nos dá um belo dum pontapé. Dóris sabia. Tudo que é muito doce acaba amargando, sua pequena experiência de vida deixou isso bem claro assim que ela abriu a boca e proferiu alguma coisa como "Lindo!"
O céu rugiu, e escureceu junto com o sorriso de Dóris.

Ousaste trazer até nosso mundo sinal tão semelhante aos homens ? A vida não te faz bem , megulhe outra vez na depressão.

Falou numa língua desconhecida, não por Dóris.
Tudo caiu em si. A dor, a impotência, o tédio demasiado, tudo isso retornava de contramão. Sentia pancadas no rosto, não físicas , vão além do que se pode provar . Era o ódio.
Olhou em volta,percebeu que estava de novo na velha casa de campo de seus avós, tão monótona.
De súbito lembrou-se do café, ah ! O café, aquele que salva a gente nas piores horas.
Mas a essa hora ele já se esgotara.
Só lhe restavam aqueles biscoitinhos e uma amarga colher de nostalgia.
A vida nem sempre é cheia dela mesma, é por vezes tão vaga quanto a mais indolente das questões.

Lavado a lágrimas, assim encerro.