sábado, 23 de agosto de 2008

Strawberry Fields Forever.

--- Mas sabe, eu sei quando é um sonho. Quando é um sonho é mais gostoso, sempre, não, algumas vezes penso que sou eu mesmo. Que eu fui e sou aquele campo de morangos. E que piso perto de você, quando vou ao campo dos morangos. Vejo despencar os morangos, pois lá, a copa de suas árvores e bem alta e é possível vê-los despencar. Alguns morangos despencam rápido demais. Mas tudo parece funcionar bem. Mas tudo parece um sonho. Nada é real.

--- Campo de morangos para sempre, sempre, sempre. E não acho que alguém esteja na minha árvore. Ela está só, caíram os seus morangos. E lá se pode perceber que ela ainda não está triste, é claro. Porém, é preciso que cada qualquer pessoa cuide dela e faça brotar dela novos morangos. E não será tarefa difícil, é de longe a mais formosa árvore, que o laborioso nutritivo de um sonho regou. Fez-se germinar de pálpebras postas. E fez das noites mal dormidas a sua redoma de vidro. Agora vou, estou indo para o campo dos morangos, não há por que esperar. É para sempre.

--- Viver é fácil de olhos fechados, sem entender realmente o que você vê. Está ficando muito difícil de chegar lá. Acho que não mais conseguiremos ver, mesmo de olhos fechados. E como, então, chegar ao campo de meus morangos? É por pra tocar sua voz, do homem que apaziguou a vida de quem vive. E a voz dele guiará quem for ao campo dos morangos para sempre. Quando o caminho se mostrar, você já não conseguirá distinguir o Não do Sim. E tudo pode parecer um sonho. Mas sabe, eu sei quando é um sonho. E às vezes, é muito difícil saber...

--- Mas está tudo errado, por isso eu acho que discordo. Não se caem mais os morangos como antigamente. Não se permite que despenque em calma. E quando eu for àqueles campos, deixe-me te botar para baixo. Pois que eu fui, quero agora inflar meus pulmões do morango, do morango dos campos para sempre. Sempre, não, algumas vezes. E eclode o fim, quando o sempre dos morangos cai em minhas mãos. Não os quero pegar, quero vê-los cair lentamente apenas. É muito mais difícil faze-lo e acho que não sou mais eu. Algumas vezes, penso que sou eu mesmo lá, fazendo despencar morangos do alto da árvore. E nunca passa disso.

--- A copa de ramagem cinza ameaça cair, e eu não quero vê-la cair, quero apenas seus morangos. Não quero estar presente quando todos os morangos tocarem o chão de uma só vez. Como se fosse muito pedir morangos... Dora em diante, quero tê-los só para mim. Não será mais para sempre, e não será breve também. E as despencas de morangos se tornarão enfadonhas: chegou o fim. A grama dilui os morangos. Nada é o que parece ser. Mas sabe, eu sei quando é um sonho...

domingo, 17 de agosto de 2008

Relicário por escrito.

--- Os finos dedos de sua mão esquerda deslizavam sobre o papel, segurando com uma imensa leveza a caneta que seu pai lhe dera na noite anterior. Era uma caneta comprida e macia, envolta em certo pedaço de borracha e com a tampa repleta de furinhos e marcas provindas de uma boca nervosa. Não era lá a caneta mais bonita, mas ainda assim era confortante saber que, com ela, era capaz de escrever algumas palavras. Palavras essas, que depois de muito bem escritas, eram engavetadas de forma cruel e nunca mais lidas. Palavras proibidas de desfilar para outros olhos, senão os seus, diminutos e negros como o ébano. Palavras suas, parte dele mesmo.
--- E com a vinda do outono, cada folha que caía do ipê parecia brotar-lhe na cabeça uma nova idéia. E escrevia tudo, punha tudo que acontecia ao seu redor no papel, em forma de letras desalinhadas e redondas. Enquanto outros garotos brincavam no quintal, ele preferia sentar-se frente à lareira, despir os sapatos e escrever suas palavras. E daí saía o sorriso que o habitou por muito tempo. Muito tempo...
--- E ele escrevia sobre tudo, sobre monstros marinhos, cemitérios de padres, frutas anormais, barreiras no tempo, cidades londrinas e sobre sua pequena família. Era o seu amado vício, sua matéria-prima para viver e mover seu mundo. Não o compreendiam. De quando em quando, ouvia certas coisas do tipo: “Palavras! Simples palavras! Que é que se tem de mais nas palavras?!”. Ah, como tinha.
--- Então, foi triste. Foi muito triste quando acabaram-se as palavras e a tinta de sua caneta secou. Quando não era mais capaz de encontrar a fonte de sua felicidade. E ele criara uma certa dependência quase química pelas palavras. Não poderia viver sem elas. Achou, portanto, melhor calar-se; não falaria e não pensaria mais em nada.
--- Acabaram-se os sorrisos e toda a tristeza do mundo pesou em suas costas. As inúmeras palavras que ele escrevia todos os dias tornaram-se lágrimas pesadas e gélidas que despencavam com tremenda força de seus olhos, já vermelhos e ardidos. Então estava tudo acabado. Não haveria mais alegria em seu papel, haveria sim tristeza, muita tristeza.
--- No fim, a tristeza e a depressão moviam seu mundo. E ele viu nessa aí, a fonte de sua renascença. Escreveria sobre sua tristeza e sua incapacidade de grafar, de forma alegre, suas palavras. Contaria em seus versos, que a tristeza não tem fim. As emoções o trariam e o levariam. E foi assim, portanto. Triste fim, quando essa mesma tristeza é bela. Eis minha autobiografia.