domingo, 19 de julho de 2009

Inquietas Sombras*

--- É véspera de fingir. Acima, branca paz do céu – inalcançável; abaixo, a tábua fria do palco que me fará dizer mentiras outra vez. À frente, longo corredor faminto de sombras e deleites da alta-costura. Há sussurros agudos e frívolos, cuja origem me é impossível determinar. Sei que tentar não vale a vida gasta e que não vale doar-se à causa perdida. Sei também que a morte mora ali e irá se revelar no primeiro ato. Sei que não estarei sozinho por mais que as luzes tenham se apagado ou vento insista em não pausar a cantoria. Sei que, por Deus, haverá sempre sussurros ali.
--- As lagartas da barriga iniciam a metamorfose. A mão esquerda encerra a chave do coração e a certeza da partida. Suspendem-se as cortinas e sigo em mar bravio a fim de entender-me e sentir-me. Para Dante, o teatro é inferno. Para mim, o teatro é inferno. Pois quero que a chama arda fundo na pele; quero engolir suas labaredas para matar as recém formadas borboletas.
--- Ato segundo: já convivo com a morte. Convivo com todos os sentimentos possíveis dentro de uma caixinha. O choro, então, jorra pela face por ter seu lugar tomado pelos demais sentimentos. Há dentro de mim, mais do que uma única alma. Na verdade, conta-las seria tão impossível quanto parar de chorar. Ora, devo parar! Há aqui muito mais que o melodrama de uma pessoa sem causa. Há a comédia e há o pierrô. A comédia deve tirar risos à força, assim como tiro lágrimas donde mais parece ter secado. O pierrô deve existir e para ele, essa tarefa resume-se a lamentar. Logo, sou pierrô. Sou-o por uma fração de milésimos de segundo, o que sob a luz cênica é, mal comparando, uma ida á Marte.
--- Covardes aplausos, hipócritas, giram a bússola e me mostram que eu estou terminado. Cheguei à última estação e não há ninguém. Descobrir-se ninguém é algo pelo qual, deve-se realmente lamentar. Lamentaria de fato, não fosse a música que ainda em mim toca. Levanta-me os braços, sacudindo-os contra minha vontade. Agradeço ao público por algo que não sou e os aplausos incessantes me ensurdecem, pondo fim ao último sentido que me restava. Há cacos de mim pelo chão. Os demais atores esmagam-nos sob suas botas brilhantes, mas já não é hora de sentir compaixão por mim. Perdi-me há muito, quando pus o pé ali, naquela mesa de sacrifício. Perdi-me nas chamas do inferno.
--- A chave gira a fechadura do coração mais uma vez. Saio dele. As gratificações no camarim não me enchem de maneira alguma. Convivi com a morte durante todo espetáculo, mas apenas fui sepultado ao fim da última palma. Agora eu sou um nada a esperar a próxima hora de por a alma na coxia. Mas se quer saber, acho mesmo que eu não tenho alma. Eu tenho é máscara.


*J. Goethe, em Fausto: "Aí vindes outra vez, inquietas sombras."