sábado, 14 de junho de 2008

Baile de máscaras e suco de laranja azedo

--- O cotidiano essencialmente humano. Que Burgess o tenha descrito na Laranja de forma tão bizarra é provável que consterne, o que provavelmente não consternará é que as mentes ignóbeis o tenham feito de forma concreta. A “dispensa social” tornou-se um perfeito estoque para máscaras. As pessoas tendem a fugir de assuntos filosóficos e teorias existenciais, sobretudo, no que concerne em “fichar” o perfil do jovem moderno e atribuir-lhes um padrão, ainda que instintivo. Elas fogem quando lhes é proposta uma reflexão social. E isso é normal, não digo que seja bom, mas é normal.
--- Eu sempre detestei a filosofia e não tenho a intenção de fazê-lo pensar nas questões éticas da vida, mas, às vezes, cabe um pouquinho de existencialismo. E agora veja, essa nomenclatura galante é mais uma tentativa de mascarar a verdadeira profundidade disto. Como eu disse, é instintivo.
--- Perceba que a Laranja Mecânica é uma de minhas obras favoritas, e não existe melhor forma de se definir o comportamento social. Portanto, hei de tratá-la aqui como a base para o entendimento dessa “embromação” filosófica. Volto a fazer menção das máscaras. Tem horas que agente é cão, gato, peixe e lagarto, e no final das contas não sabe mesmo que pele vestir. Não sabe, não é porque se esconde atrás da personalidade humana um caráter falso e mentiroso, mas porque vem do próprio jogo social à que estamos submetidos. Quero dizer, nas muitas atitudes cotidianas as pessoas precisam saber se manter um uma hierarquia, adequar o nível de “atenciosidade” e por muitas vezes, há uma certa necessidade em maquiar a verdade.
--- Como sugere Burgess, o homem moderno está mecanizado e desde o berço tem sua predestinação. Devo afirmar que isso não é lá muita coisa, aliás, não é coisa alguma. É tudo uma questão subconsciente, não tem “bom e mau”, “certo e errado”... não tem. E Isso é horrorshow! Não tem a pessoa boa; tem a pessoa com complexo tendencioso a manifestar ações positivas e não-prejudiciais aos demais. Todo mundo é mau e isso depende muito de que máscara estamos usando. E talvez seja por isso que o Teatro é tão fascinante! Uma forma explícita de exercer uma mentira cativante!
--- Tudo é relativo. Não gosto de frases feitas, mas tenho que admitir que colhemos aquilo que plantamos. Somos complementares uns aos outros, somos feito pó velho num cinzeiro; um grãozinho de pó não faz o boêmio levantar-se da cadeira e esvaziá-lo, creio que seja mais ou menos isso – e eu não sou a melhor pessoa para lhe dar exemplos. Tudo é relativo e toda rotulação é burra.
--- Tal qual De Large e seus druggies, essa insensatez torna-se absurda quando comparada aos moldes do homem civilizado. Mas se lhes disser que é menos a civilização e mais qualquer outra coisa – a mente, talvez – é bem provável que não acredite. E freud NÃO explica. Agora, ainda que eu tenha respeito às opiniões alheias, é extremamente frustrante essa sua descrença infundada. Algo que contribui para essa acoplagem sem freio. Essa massa cinzenta de marionetes mutiladas, as quais o domador é de natureza acéfala. É triste, mas essas reflexões “tardias” condizem perfeitamente com o século presente. E o mais revoltante é perceber que essas palavras bonitas – que eu tanto indago – são merda em pó no exercício de padronizar a sociedade. Aliás, tudo é merda em pó no que diz respeito à sociedade! E para o “grand finale" eu vos digo que todas essas sentenças lidas acima não passam da mesma ignorância relatada nas primeiras frases. É, eu não sei de nada, e nem você. Niguém sabe. Os dados estão na idade da pedra, e a ciência tem parecido cada vez mais um texto de Comte! Absurdo!
--- Tudo bem, vou me acalmar. É bem capaz que eu venha a perder minha sanidade – isso, se já não o fiz! – além do mais, é uma forma bem estranha de texto. Eu sei disso. E sei também que se cinco pessoas estejam lendo isso agora, é muito! Cinco? Talvez duas. Quer saber? Eu dispenso a sua atenção. Afinal, você não sou eu, e por mais que fosse, é mesmo tudo “tão bizarro quanto uma Laranja Mecânica”.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sob o Céu turquesa, descansam olhos.

Qualquer que fosse a sombra projetada perto da menina, qualquer que fosse o rastro de penumbra sobre os gomos de sua saia, nada fazia valer importância. Qualquer coisa lhe era dispensável, qualquer sabor de morango, qualquer coisa alguma, tudo estava distante e proporcionalmente afastado ao seu estado de espírito. Quando os raios solares marcavam-na a pele, quando a chuva lhe feria os pulsos e, sobretudo, quando a relva matutina a tornava obcecada em descortinar formas às nuvens. Na verdade, era esse o seu plano de vida, viver com a vista nas nuvens, esperando ver novos contornos celestes. Sua máxima era sentar no toco tomado de fungos e descansar a vista nelas. Ela amava as nuvens. Passava horas a fio a desvendar a magia que elas encerram. Nada além da natureza, adornando a vida daquela menina, nada mais puro que sua íris espelhada, nada mais cativante... Maluca? Talvez. Ela não tinha muitos amigos, na verdade, não os possuía mesmo, e esse não era o maior dos problemas. As pessoas descrentes e instruídas, os dotados dos “bons modos” achavam-na a rainha dos bobos. Mas como vos disse, pouco importava a opinião pública, e quando a perguntavam o que de tão belo havia no céu, ela dizia estar “contormejando” as nuvens, contornava e almejava... É claro que o eufemismo não lhe poupava à exposição e, de certa forma, dava-lhe certos ápices de prazer quando distinguia um coelho, ou um cordeiro nas nuvens, aquilo aguava seus olhos de tal maneira inexplicável.
Traçou metas impossíveis e fez promessas aos deuses mais díspares. Sonhou puritanamente com sua liberdade e tentou por fim ao limite. E foste tão cruel consigo mesma que por muitas vezes teve a esperança abalada, tropeçou e cada dia a distanciava mais das nuvens. Começou a realizar um futuro frustrado, cheio de lacunas a se preencher por algo que nunca foi, e aos poucos derramava os sonhos no papel e os arquivava em gavetas há muito esquecidas. Fechou os olhos, então. Deitou a cabeça sobre a grama fresca e gélida e pôs-se a dormir.
A chaga eterna que marcou seu peito doía ardentemente sobre o botão de prata. Parte de sua alma estava nas nuvens, e jamais alcançaria seu id perfeito e selvagem. Aquilo de certa forma provocou um novo parto na menina. Um parto e um aparto de seus sonhos pueris, um aceno de mão eterno. Sem maiores brasas de esperança, e desiludida com seu platonismo celeste, ela guardou tudo numa caixinha chamada memória.
E cresceu. Virou mulher, estudou. Ficou famosa, invejada, rica. Fugaz, astuta, maliciosa. Pautava sua vida sobre os moldes da razão, da moral e dos bons costumes.
Adentrou os mares da matemática, da complexidade e do raciocínio. Uma mulher ocupada e vazia. Nunca mais passava perto do quintal, o que na verdade não mais podia ser chamado de quintal, pois o mato já roçava nos joelhos.
Ah, mas o que aqui seria uma narrativa absurdamente longa, não será. Pois não pense cá que as gavetas e as caixas rígidas do passado não se abrem. É, um dia elas abrem, pode esperar. E... abriu, portanto.
Ela sentiu uma estranha necessidade, algo que não sentia faz tempo. E estremeceu. A idade vinha buscá-la, trazendo um turbilhão de antiguíssimas sensações. Teve vontade de despir os sapatos e caminhar no jardim. Mas o faria rapidamente, na verdade, seria até rápido demais. Apenas um frescor para a mente.
Uma sensação estranha, que nem mesmo minha onisciência explica. Ela flutuou sobre os cipós e a vegetação baldia, voltou três décadas no tempo e as rugas sumiram-lhe à face. E foi aí. Em um giro, em seu momento mais efêmero e vertical que ela notou as gotas brancas e gordas que nadavam num azul tão maior. Coisa tão linda, tão linda, que piscou forçando a pálpebra para garantir que era real. Era real, era mesmo. E ela então lembrou de tudo. Das estações castigando-a sobre as urzes do quintal, do sol clareando o céu. Das nuvens. Nuvens, as amadas gotas de algodão. E por um instante sentiu-se completa, se sentiu viva. Sentiu a carne e a mente no exercício de viver. Sentiu-se plena, perfeita.
Os céus, então, alcançaram-na. Formaram um conúbio santo de total entrega... Desmaterializam um ao outro. A alma dela está livre agora. E Deus responde; os envolve num sincero abraço. Ela ouviu o canto dos pássaros. Ouviu... ah, um coelho!