domingo, 17 de agosto de 2008

Relicário por escrito.

--- Os finos dedos de sua mão esquerda deslizavam sobre o papel, segurando com uma imensa leveza a caneta que seu pai lhe dera na noite anterior. Era uma caneta comprida e macia, envolta em certo pedaço de borracha e com a tampa repleta de furinhos e marcas provindas de uma boca nervosa. Não era lá a caneta mais bonita, mas ainda assim era confortante saber que, com ela, era capaz de escrever algumas palavras. Palavras essas, que depois de muito bem escritas, eram engavetadas de forma cruel e nunca mais lidas. Palavras proibidas de desfilar para outros olhos, senão os seus, diminutos e negros como o ébano. Palavras suas, parte dele mesmo.
--- E com a vinda do outono, cada folha que caía do ipê parecia brotar-lhe na cabeça uma nova idéia. E escrevia tudo, punha tudo que acontecia ao seu redor no papel, em forma de letras desalinhadas e redondas. Enquanto outros garotos brincavam no quintal, ele preferia sentar-se frente à lareira, despir os sapatos e escrever suas palavras. E daí saía o sorriso que o habitou por muito tempo. Muito tempo...
--- E ele escrevia sobre tudo, sobre monstros marinhos, cemitérios de padres, frutas anormais, barreiras no tempo, cidades londrinas e sobre sua pequena família. Era o seu amado vício, sua matéria-prima para viver e mover seu mundo. Não o compreendiam. De quando em quando, ouvia certas coisas do tipo: “Palavras! Simples palavras! Que é que se tem de mais nas palavras?!”. Ah, como tinha.
--- Então, foi triste. Foi muito triste quando acabaram-se as palavras e a tinta de sua caneta secou. Quando não era mais capaz de encontrar a fonte de sua felicidade. E ele criara uma certa dependência quase química pelas palavras. Não poderia viver sem elas. Achou, portanto, melhor calar-se; não falaria e não pensaria mais em nada.
--- Acabaram-se os sorrisos e toda a tristeza do mundo pesou em suas costas. As inúmeras palavras que ele escrevia todos os dias tornaram-se lágrimas pesadas e gélidas que despencavam com tremenda força de seus olhos, já vermelhos e ardidos. Então estava tudo acabado. Não haveria mais alegria em seu papel, haveria sim tristeza, muita tristeza.
--- No fim, a tristeza e a depressão moviam seu mundo. E ele viu nessa aí, a fonte de sua renascença. Escreveria sobre sua tristeza e sua incapacidade de grafar, de forma alegre, suas palavras. Contaria em seus versos, que a tristeza não tem fim. As emoções o trariam e o levariam. E foi assim, portanto. Triste fim, quando essa mesma tristeza é bela. Eis minha autobiografia.

4 comentários:

Anônimo disse...

Eis aí a nossa biografia.
E que a tristeza da falta de inspiração seja sempre uma fonte inesgotável de palavras. Cheers.

Lucas Cassol Gonçalves disse...

Levamos a tristeza de mãos dadas com a mente embebida nas rotinas estúpidas.

Entretanto o calabouço tem esse canto calado e um tanto aconchegante chamado escrita.

PS: Gostei.

Laryssa Frezze e Silva disse...

Gosto quando as palavras se tornam o próprio impulso para a sua existência. Gosto da independência delas... No entanto, é bem difícil não entrelaçá-las à histórias, uma vez que ( e você sabe bem disso) nascemos para contá-las... Por isso, parabéns! Além disso, falar da tristeza de não tê-las é algo muito real e até diferente. Não sei, não li muitas coisas a respeito. Se não me engano, este é o terceiro texto que tenho contato com essa temática.
Você foi muito original. Acho que você É este texto.
Gostei a beça... ^^

Unknown disse...

"Triste fim, quando essa mesma tristeza é bela. Eis minha autobiografia." Você não pode estar falando sério, né?

Ótimo!