segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Bethania.

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(Queridos amigos, antes de mais nada, espero que esse texto passe a vocês, tudo o que eu quis passar para mim mesmo, pois escrever, na minha concepção, é, sobretudo, um ato de inconsciência. Peço desculpas se as palavras não exprimirem o real sentido que quis dar a elas - ossos do ofício! E conto mais uma vez, com o auxílio da sua imaginação. Vamos ao texto.)
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Ela passava o gume frio da faca sobre si. As veias destacadas da pele magra e morena rompiam-se aos poucos e, de forma curiosa, proporcionavam um efeito compassado aos filetes de sangue que brotavam dos pelinhos. Pode-se garantir que havia menos lágrima do que sangue; sangue era algo que lhe sobrava aos montes, pois ela já tivera de sangrar muito na vida. Aprendeu a poupá-lo, aprendeu a destilá-lo aos pouquinhos, ritmando.

Ela acendeu um cigarro e prestou atenção às formas que a fumaça tomava ao entorno de seu rosto. Ela podia jurar que havia algumas letras voadoras ali. O calcanhar doía – o palco não devia parecer cimento, pensou. Por outro lado, seu coração estava anestesiado e a folia ainda contraía os músculos de seu corpo, bombeando sangue para as veias abertas. Ela era dona do dom.

Eu estava bem na sua frente. Bethania me chamou de meu amor. Bethania repetia frases sussurradas que mal reuniam forças para chegar ao pé do meu ouvido. Ela pediu que eu tocasse os seus cortes. “É fundo o bastante?”. Mas eu era fraco perto da Bethania e o sangue dela mesclava-se com as minhas lágrimas, que eu não conseguia prender. No chão, uma mistura densa e escarlate corria livre.

A força daquela voz me controlava. Não pude afastar meus fantasmas de mim e acabei cedendo ao impulso. Meu dedo afundou no sangue da Bethania. Quente. Ela sorriu um sorriso inconstante e pude sentir a epifania; percebei, pela intensidade do momento, que suas memórias estavam vivas em mim.

Senti a força do seu timbre e das antigas canções me levando para um passado preto-e-branco – se é que o mono cromatismo não se devia à tontura da queda. Dei por mim prestes a entrar no palco. O único som audível originava-se das batidas do meu coração em arritmia. Pé direito, pé esquerdo, pé direito. E o montão de cabeças estagnadas estava bem na minha frente. Nosso senhor, eu senti medo. Por alguns segundos eu fiquei ali, imóvel. Na ponta do meu nariz havia algumas gostas hesitantes de suor, que teimavam em não cair.

Dei por mim, por Bethania. Dei por mim que eu era Bethania. Mas essa conclusão logo foi abafada pela música que saía pela minha boca. Música que eu não podia controlar. Palavras feitas agulhas que estouram balões. Comecei a cantar trechos tristes, sustentados pelo vigor da voz da Bethania, da minha voz.

"Flor amarela, flor de uma longa espera. Logo meu coração ateu."

Ateu, ateu. Quem vai dizer que não foi obra de deus? Eu daria todo meu coração rachado à Bethania. Porque ela me fez ver que as coisas não acabam, que a solidão é uma passagem de mão única para tudo que se quer realizar na vida. A solidão é mentira. Há sempre um fiapo da Bethania em mim e eu não vou te perder em qualquer canto. Você é a mais doce. Ah, Bethania.

3 comentários:

Unknown disse...

Belas imagens são construídas pela reunião dessas palavras! O tema "teatro" segue com este texto. Assim fará o próximo?

Laryssa Frezze e Silva disse...

Olá F. Fiddgins! ^^
ainda outra vez eu venho lhe falar um pouquinho das impressões que seus textos me trazem. A cada nova leitura tenho a impressão mais viva de ver as cenas acontecendo bem na minha frente e, somente o ato de ler, anula os acontecimentos ao redor. Seus textos prendem. Suas letras formam imagens e isso somente me revela uma coisa: suas histórias são a cada vez um pouco mais teatrias. Não me refiro somente ao tema, mas também ao fato de que o leitor pode ver os acontecimentos tão claramente como se assistisse à uma peca. Bem, quanto ao texto em particular, o achei muito profundo e também íntimo de certa forma. Tanto pelo ponto de vista do narrador, como do ponto de vista de Bethania. Tive a impressão que, ainda que parecesse fraca pela perda do sangue, Bethania é forte, pelo controle que possui sobre si mesma. A perda de sangue em si, me deu a idéia de uma sangria de alívio. O sangue vaza, levando embora a euforia e todas as emocões que acontece em exagero dentro dela... Quanto ao narrador, entendo a identificacão dele como uma absorcão dessa euforia, ao entrar em contato com o sangue. Euforia que ele liberta ao entrar no palco e cantar seus cantos tristes. E, ao compartilhar dessa mesma euforia, o narrador é também Bethania e vice-versa. São mesmo ossos do ofício ver diferentes interpretacões para as mesmas palavras; talvez essa interpretacão toda não tenha sido sua real intencão, mas foi como eu senti tudo o que ocorreu.
Em todo, o texto é tocante. Mas se tivesse de escolher somente uma parte, seria esta:
"Porque ela me fez ver que as coisas não acabam, que a solidão é uma passagem de mão única para tudo que se quer realizar na vida. A solidão é mentira." Há ainda muitas coisas a se saber sobre Bethania, outros tantos sentimentos que vazam em sangria, talvez...
Parabéns e obrigada, mr. Fiddgins. ^^ Se o bom texto é aquele que nos põe a pensar, você alcancou esse objetivo. Bethania não sairá de minha cabeca assim tão cedo...
Abracos!
=***

Anônimo disse...

Teatro?
Seus textos são, para mim, cinematográficos, em que me vejo envolta no escuro do cinema, nos seus takes, nas suas múltiplas sensações: sou testemunha ocular de algo que todos ali compartilham e sentem, mas que eu compreendo em uma só voz. Seus textos são imagens, são universos particulares que nós mesmos criamos palavra por palavra, vírgula por vírgula. Assim, buscamos traços entre Bethânia e o narrador para, enfim, esbarramos em reflexões sobre nós mesmos, sobre nosso entendimento.

"Porque ela me fez ver que as coisas não acabam, que a solidão é uma passagem de mão única para tudo que se quer realizar na vida. A solidão é mentira." De fato, o ápice.

Abraços =)