sexta-feira, 18 de abril de 2008

O carnaval da madrugada.

--- O semi-árido é como que palco do Brasil, cada fenda que brota é um sonho, é pena virar erosão com toda sua homogeneidade. É sim, a lógica de um perfeito Brasil de poucas cores e de essência rara e fragmentada. E é para lá dos sertões que passa o carnaval da madrugada.
--- Na totalidade, eram bonecos de pano gasto. Em um coro de lamento pelo agreste, aquela onda trazia ainda mais sombra, aderindo-se aos bumbos e flautins. Parecia um tanto quanto distante, talvez seja ele um mau juízo da miragem, ou da reza profana... Não, não era simples ilusão, estava lá, um cativante carnaval de novembro, cantado em ouro e bronze.
--- E a parada que tanto se escuta, carrega consigo os ribeirinhos de mentira e de saliva seca. E a peça de roupa úmida fica na margem, só observando a graça esculpida na grande farsa do carnaval. E aquela gente jardinava entre os passos o que um dia fora um deserto dos mais quentes. A mãe era ao mesmo tempo senhora e filho febril, ambos de pés rachados, caminhando e indagando o que há muito não se via nas calçadas do Brasil.
--- Houve a perda e a morte na terça, no entanto, não pudera o céu curar a dor do aparto. E assim aquelas pessoas pouco davam importância aos corpos, elas seguiam cegas pelo bloco. Os jovens e os velhos, todos perpetuavam o ritual, e a lepra e o câncer sararam pelos três dias. O bloco seguia para o sul.
--- Do gado, do mato, de algum lugar saía a marcha desenfreada, e não pense haver uma razão que justifica tamanha peregrinação, pois não há, o combustível era o suor. Até a quarta ninguém falou, eram risos e fardos do bloco ascendendo ao morro em busca de acoplar toda a gente. Não era possível distinguir tronco e membro do cardume, ele era um só, e os pés tinham a mais perfeita sincronia... E já totalizavam a infinidade.
--- Ninguém nunca soube quem eram aqueles, talvez fossem almas errantes... E para onde iam? As perguntas dilatavam-se agora na ponta do continente, a beira mar. Nada podia conter a manada, e a rua estendeu-se pelo oceano. Oh, quantas daquelas pessoas nunca retornariam às suas casas... Elas já sagravam a carne, mas isso não importava. Era sangue e poeira, poeira e sangue, e só.
--- Era impossível vê-las como gente, faziam-se passar por marionetes. Todas iguais, a mesma face e o mesmo fim. As chagas da perna deixavam um rastro vermelho por onde passava aquele bloco. Qualquer dor não importava, na verdade, não era coerente atribuir sentido àquilo, e resumia-se a um enorme lençol de anônimos rastejantes.
--- Ah! E eu fui pego pelo bloco. E no fim, as cabeças eram as próprias lápides, e os vermes eram eles próprios. O carnaval da madrugada peregrina até os dias de hoje, e cada vez mais numeroso. É... e eles ainda derramam sangue, aliás, como demora a quarta de cinzas!

3 comentários:

Beernardo ; disse...

Nossa, bom texto. baixo raiz brasileira no texto. hahaha
brincadeira, tá legal.

é isso ai 'brazil way of life'
a diferença é que é mais alienado que o american way of life... nem tanto, convenhamos?! mas da quase no mesmo... a diferença é que entra pagodão no meio.


ah, não há de que! hehe... quando eu apresentar eu te digo como foi.
vlw!
abraços.

Rômulo disse...

Gosto dos ambientes q vc cria... Mesmo não se tratando de uma narrativa contínua consegue-se ver o cenário inteiro. Muito bom!

Laryssa Frezze e Silva disse...

OO...!
Meu deus!! Esse texto parece retirado de um romance maior e comprido. Parece parte de algum lugar. Mas acho que é por que deixou aquela sensação de continuidade, de que o bloco nunca parou, só foi arrecadando gente....